13/12/2019
Atualizada: 13/12/2019 07:59:02

MARCELO SAYAO/EPA

Matéria completa disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-50695248

Com cinco edições publicadas, o relatório anual Free to Think, que monitora a perseguição a acadêmicos e a universidades em todo o mundo, já teve estampadas em sua capa fotos do Irã, da Turquia, do Paquistão e Egito. Na edição de 2019, quem ocupa a primeira página do relatório é o Brasil.

A capa traz uma imagem de estudantes protestando no Rio de Janeiro em maio contra cortes de orçamento e bolsas anunciados pelo governo federal, capturada por Ricardo Moraes, da agência Reuters. Pela primeira vez, o Free to Think ("Livre para pensar", em tradução livre) traz também um capítulo dedicado ao Brasil, afirmando que "pressões significativas no ensino superior brasileiro aumentaram na véspera e no período posterior às eleições presidenciais de 2018". Nas edições anteriores, o Brasil não foi mencionado.

O relatório, de caráter mais qualitativo, cita na edição de 2019 declarações de membros e iniciativas do governo federal brasileiro cortando investimentos para instituições e disciplinas específicas, como a sociologia e a filosofia; apresenta ainda ações que, de acordo com o documento, limitam a autonomia das universidades; e episódios de pressão, por agentes policiais e civis com motivações políticas, contra campus durante e depois das eleições presidenciais.

O destaque inédito ao Brasil justifica-se não necessariamente pela dimensão da perseguição a acadêmicos no país em comparação com o resto do mundo, e sim a uma mudança na conjuntura, explicou à BBC News Brasil Robert Quinn, diretor executivo da organização sem fins lucrativos que produz o relatório, a rede internacional Scholars at Risk ("Acadêmicos em risco"), baseada na Universidade de Nova York. A publicação detalha ainda os casos da China, Índia, Sudão e Turquia e abrange o período de setembro de 2018 a agosto de 2019.

Quinn, doutor em filosofia e com uma trajetória de prêmios e passagens por organizações dedicadas à promoção científica e aos direitos humanos, diz que além do relatório, outra atividade do Scholars at Risk é receber pedidos de assistência por acadêmicos que denunciam estar sendo vítimas de perseguição.

A rede, que está celebrando 20 anos de existência, recebeu em sua história 34 solicitações desse tipo vindas do Brasil — 30 delas no último ano, o que fez a rede acompanhar mais de perto a situação do país e depois incluí-lo no relatório.

"Eu não leria a imagem como dizendo: o Brasil foi o pior país do mundo no ano passado. Isto seria injusto", afirmou, falando de Nova York em entrevista via chamada de vídeo. "Mas acho que o que ela está dizendo é: o Brasil está aqui, e isto é novo."

"Há algo acontecendo e precisamos olhar para isso. Não quer dizer que há um grande problema, mas significa que precisamos analisar. E, quando olhamos, uma parte dos incidentes foi muito bem pronunciada por representantes do governo ou políticos no Brasil. Algumas destas falas circularam pelo mundo", diz.

O relatório apresenta, por exemplo, declarações do ministro da Educação, Abraham Weintraub, e do presidente Jair Bolsonaro. Uma delas foi uma entrevista de abril em que Weintraub afirmou que as universidades federais Fluminense (UFF), da Bahia (UFBA) e de Brasília (UnB) teriam cortes de verba por promover "balbúrdia" em vez de buscar excelência acadêmica, segundo ele. Outra fala do mesmo mês incluída no documento foi referente às disciplinas de filosofia e sociologia, que de acordo com o ministro poderiam ter verbas para seus cursos cortadas por não serem rentáveis.

Esta posição foi endossada por Bolsonaro no Twitter, onde ele escreveu que a medida teria o objetivo de "focar em áreas que gerem retorno imediato ao contribuinte, como veterinária, engenharia e medicina".

A reportagem solicitou posicionamento dos ministérios da Educação e Ciência e Tecnologia na manhã de segunda-feira (9), mas não obteve resposta até esta publicação.

Fazendo uma analogia com a medicina, Quinn diz que há casos em que a tensão entre as universidades e o poder é crônica, ou seja, se expressa de uma forma saudável, por meio de debates públicos e protestos, por exemplo.

E há os casos agudos, em que a tensão é liberada em forma de violência e perseguição. Para ele, a escalada de casos do Brasil que chegaram à organização indicam que o país pode estar chegando em sua fase aguda.

"Baseado na história em outros lugares, temos um alarme do que pode acontecer e do que pode piorar. A situação (no Brasil) é preocupante."

"Acho que o maior sintoma de todos no Brasil, pois é algo que se observa historicamente, voltando literalmente a séculos atrás, é a construção artificial do 'outro' por aqueles que estão no poder. Esta criação não se vale do conhecimento, da racionalidade ou de evidências, mas de emoções, energia negativa e uma remissão a um passado imaginário 'puro'".

"No ensino superior, isso se manifesta com governos, partidos ou representantes importantes do poder mirando um acadêmico em especial ou uma disciplina particular como estrangeira, não tradicional".

Ainda que o relatório lembre que os cortes nestas universidades e disciplinas não tenham sido concretizadas, Quinn diz que tais falas contribuem para um cenário de cerceamento à liberdade de pensamento — que não deve ser orientado apenas pelo critério da rentabilidade, ele destaca.

"No nosso histórico de casos, por exemplo, vemos que qualquer disciplina pode se tornar um alvo", aponta o diretor.

"Há alguns anos, tivemos o caso de um professor na Tunísia que lecionava uma disciplina sobre saúde pública, e trabalhava especificamente com mortalidade infantil. Você pode perguntar: por que isto se tornaria algo político? Porque o governo, e se tratava de uma ditadura, estava mentindo sobre a mortalidade infantil — a situação era muito pior do que estava sendo divulgado."

"Se você considera a história da União Soviética, por exemplo, os físicos lideravam a dissidência. Mas nunca pela física em si, pelas fórmulas. Era porque eles queriam conversar com físicos de outros países, mas eram impedidos de viajar."

"Hoje, no cenário contemporâneo, há países, como o Irã, que tentam recrutar físicos para participar de seus programas nucleares. E, se eles se negarem, vão para a prisão."

É também lembrado no relatório sobre o caso brasileiro um decreto presidencial de maio que alterou os procedimentos para nomeação de órgãos vinculados à administração federal (não apenas instituições de ensino).

Na visão de entidades que se manifestaram sobre o decreto, como o Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN) e a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) do Ministério Público Federal, ele poderia afetar diretamente a autonomia das universidades públicas.

Isto porque o texto abre caminho para que o governo, e não mais os reitores, designem nomes para cargos de vice-reitor, pró-reitor, diretores e vice-diretores de faculdades.

Pressão vinda da Justiça e de grupos políticos em campus brasileiros

Além de ações do governo federal, o relatório aponta para decisões de juízes e ações policiais em universidades no contexto eleitoral, motivadas por acusações de que estudantes e professores estariam se manifestando partidariamente em espaços públicos.

Foi o caso do confisco, por decisão judicial, de uma faixa pendurada na Universidade Federal Fluminense (UFF) com as palavras "Direito UFF Antifascista"; ou de folhetos de uma associação de docentes da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) intitulados Manifesto em defesa da democracia e das universidades públicas.

O relatório Free to Think lembra que, no final de outubro de 2018, a ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Cármen Lúcia concedeu medida cautelar suspendendo ações de busca e apreensão, autorizadas por juízes de Tribunais Regionais Eleitorais, em universidades de todo o país.

Do período eleitoral, o documento denuncia ainda relatos de ataques e assédios de grupos civis com motivações ideológicas contra estudantes da Universidade de Fortaleza (Unifor); Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio); Universidade Federal do Pará (UFPA); e Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

Por fim, o relatório apresenta recomendações específicas para o caso brasileiro, como a investigação e eventual punição de autores de incidentes em que membros da comunidade universitária tenham sido colocados em risco; e o recuo de declarações e políticas que estigmatizem e ataquem o ensino superior do país.

Em relação às 30 solicitações de assistência do Brasil recebidas pelo Scholars at Risk (SAR) no último ano, a entidade disse que seis estão sob acompanhamento de fato, enquanto as outras não puderam ser atendidas diretamente pela organização, sendo direcionadas a outras formas de assistência.

"Em relação às outras 24 aplicações, algumas não atenderam aos critérios de bolsa ou risco. Como é possível observar em nossas ações, como o Free to Think, o SAR está preocupado com as pressões no setor da educação superior no Brasil que estão impactando todos os acadêmicos e estudantes do país. Devido aos recursos limitados e um crescente volume de pedidos de assistência, nossos serviços de proteção priorizam aqueles que relatam experiências de ataques e ameaças diretos", diz nota enviada à reportagem.

A rede SAR foi fundada em 1999 e tem seções em diferentes partes do mundo, principalmente na América do Norte, Europa e África. Na América Latina, a rede tem colaboradores que participam anonimamente no monitoramento e verificação de incidentes.

Nos casos mais graves de perseguição a acadêmicos, o Scholars at Risk tem um projeto que organiza asilo para que pesquisadores possam trabalhar e morar em outros lugares em que não estejam sob risco; há também serviços de assistência e campanhas para casos de acadêmicos presos.

A organização tem apoio da Universidade de Nova York, onde é sediada, e recebe doações individuais e de outras entidades, como a Vivian G. Prins Foundation, Open Society e National Endowment for Democracy.

Fonte: Mariana Alvim/BBC News Brasil em São Paulo

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