27/04/2020
Atualizada: 27/04/2020 10:29:07


Em todo o mundo, existe um debate bastante oportuno sobre a redefinição das funções do Estado no sistema capitalista provocado pela contaminação e proliferação descontrolada da COVID-19, saindo de uma fase anterior orientada pela lógica neoliberal a outra de intervenção maciça no domínio econômico e atuação decisiva na área social (políticas de proteção contra o desemprego, ampliação de um sistema de seguridade social, fortalecimento dos sistemas públicos de saúde, criação de programas de renda mínima, subsídios ao consumo de serviços de água, energia elétrica, gás).

A crise social e econômica inimaginável desencadeada pela COVID-19 alterou radicalmente este cenário de primazia das teses neoliberais. É bem verdade que essas teorias nunca foram unânimes, sempre foram combatidas em diferentes momentos e lugares, porém sua hegemonia, até então, me parece incontestável. Nos EUA, Donald Trump anuncia um investimento de mais de 1 trilhão de dólares na área social, seguindo a trilha de outras importantes nações europeias como Alemanha, Itália e Grã-Bretanha. Na América Latina, o exemplo do Chile, e especialmente, da Argentina, são ilustrativos desse momento histórico ímpar, pois estes países se encontram em meio a uma profunda crise econômica, com repercussões políticas notáveis.

No Brasil, para o setor empresarial e mercado financeiro, a ideia do Estado mínimo sempre foi uma falácia. Estes setores contaram historicamente com amplos e ilimitados recursos do tesouro a juros subsidiados ou mesmo a fundo perdido, sob o pretexto de que “setores fundamentais da economia” não poderiam quebrar. O Estado mínimo existe mesmo para as áreas sociais, que diz respeito aos segmentos mais vulneráveis da população, extremamente dependentes da ação dos governos em decorrência da estrutura desigual de distribuição da riqueza.

Contudo, o que o vírus tem provocado em termos de redefinição do papel do Estado no mundo, provoca, por óbvio, repercussões acentuadas no Brasil.

Ainda assim, o descompasso com os ímpetos de mudança de papel dos governos e do Estado, observados no mundo, é enorme. Enquanto governos de direita, como de Emmanuel Macron na França, já admitem expressamente que a área social precisa ser tratada diversamente pelas lideranças políticas e pelo mercado, com decisiva atuação de um Estado remodelado a esse novo momento histórico, no nosso caso, as autoridades federais continuam negando a realidade, emitindo sinais trocados nesta crise, o que comprova a absoluta falta de convicção nas saídas que precisam ser encontradas para a superação da mesma, conforme os exemplos externos.

Nas últimas semanas, o STF considerou constitucional a celebração de contratos de trabalho individuais sem a participação das entidades sindicais, ainda que os prejuízos aos direitos trabalhistas estejam claros; tanto a Câmara dos Deputados quanto o Senado Federal estiveram às vésperas de votar medidas de redução salarial para os servidores públicos (lembrando que existem outros tantos projetos de retirada de direitos tramitando nas duas casas legislativas); o governo Bolsonaro continua tentando se aproveitar da crise para aprovação de pacotes de subtração de direitos, criando dificuldades de transferência de receitas aos demais entes federativos e atrasando propositadamente as ações de ajuda aos trabalhadores desempregados, subempregados e em situação de pobreza e miséria, para mencionar alguns exemplos que demonstram as diferenças de concepção da ação do poder público entre o Brasil e os demais países em meio a esta  gravíssima crise sanitária.

Há mais. Em que pese a movimentação do ministério da Economia na direção da fracassada agenda ultraliberal, o próprio governo anuncia a caricatura de “novo PAC”, contrariando o que se propõe até aqui, sob a crítica generalizada da grande mídia associada aos interesses especulativos, que apenas reproduz as determinações externas de subordinação aos imperativos do capital.

No contexto atual, o rompimento político do ex-juiz Sérgio Moro e do presidente Jair Bolsonaro representou a disputa entre pólos de um mesmo agrupamento político situado à extrema direita. Em Moro existe o desejo inconfessável de controle pessoal sobre os órgãos de inteligência e investigação subordinados ao ministério da justiça, com o objetivo de intimidação e perseguição aos seus adversários políticos. Sua face fascista foi sendo revelada ao longo dos anos e ficou ainda mais evidente durante esse período em que ficou no governo (a cena da vistoria a um presídio federal sob um tanque do exército é ilustrativa desta sua vertente autoritária). Não nos enganemos: a autonomia da Polícia Federal requerida por ele é apenas uma figura de retórica no melhor estilo lacerdista de pretender fazer justiça a partir de critérios estritamente pessoais, mirando os setores progressistas e segmentos sociais, e eventualmente algum segmento discordante em seu próprio campo político. A imagem de herói nacional construída pelos grandes veículos de comunicação alimenta a sua sede insaciável de poder. 

No caso de Bolsonaro, não basta a ocupação do Palácio do Planalto pela via eleitoral (comprometida pelas fake news e pela utilização de recursos de “caixa 2” durante a campanha, que não foram devidamente apurados pelos poderes competentes). Suas tendências autoritárias também não podem ser ignoradas. Seu assédio sobre os demais Poderes da República continuará, uma vez que ele tem sido relativamente bem sucedido em seus planos igualmente fascistas de controle pleno do Estado brasileiro. Também controla diretamente, desde meados do ano passado, órgãos importantes como a Receita Federal, o COAF e indicou um importante aliado na Procuradoria Geral da República, que apenas agora começou a encontrar resistências (por parte de outros integrantes do MPF), em suas ações de blindagem do presidente. 

Há quinze dias, parecia que o governo iria cair de um dia para o outro, caso Bolsonaro efetivasse a demissão do ministro da saúde, Henrique Mandetta. Demitiu e ficou por isso mesmo. Em seguida, aproveitando o suposto avanço das investigações contra os seus filhos, avançou sobre Sérgio Moro, que saiu do governo menor do que entrou, embora a grande mídia procure demonstrar o inverso. Não existe hoje uma maioria formada na Câmara dos Deputados para se iniciar um processo de Impeachment, especialmente devido às negociações do governo com a ala mais fisiologista daquele Poder, denominado de “centrão”. Esta, aliás, deve ser a razão principal da relutância do presidente Rodrigo Maia em iniciar logo este processo de afastamento. A crise de saúde pública e a proibição das aglomerações impedem que as ruas sejam tomadas por movimentos de pressão, o que seria um elemento decisivo nesse momento de impasse político.

Por ora, apesar do desgaste, Bolsonaro conta com a máquina pública nas mãos, o apoio (ainda) do setor financeiro, de importantes veículos de comunicação, das igrejas neopentecostais e, talvez, obtenha um aumento de popularidade momentâneo enquanto forem mantidos os pagamentos do auxílio emergencial, ainda que de modo desorganizado. Só não temos como saber por quanto tempo esse capital político e econômico resistirá às investigações que irão prosseguir a respeito dos seus crimes familiares e ao crescimento descontrolado das tragédias da COVID-19. De igual modo, certamente o próprio Bolsonaro prosseguirá cometendo novos desatinos diários junto com os seus alucinados ministros ideológicos, principalmente agora que estão no olho do furacão.

Em minha opinião, não podemos assistir passivamente tudo o que está acontecendo sem reagir.  É imprescindível que os sindicatos e demais representações dos trabalhadores se engajem diretamente nesse processo de mobilização crescente em defesa da democracia, constituindo uma frente ampla contra as táticas de dominação e exploração da direita fascista e do capital financeiro-especulativo, que são os sustentáculos do governo Bolsonaro. A continuação desse governo só acarretará mais exploração, pobreza e mortes da maioria da população. 

O “Fora Bolsonaro” se impõe. Não é a solução dos problemas do país; Mourão, assim que empossado, aproveitará a “legitimidade” do governo para continuar retirando direitos da classe trabalhadora e subordinando o país aos interesses do capital financeiro-especulativo, sem abrir mão dos instrumentos repressivos à sua disposição para atingir tais propósitos. Mas a retirada de Jair Bolsonaro e da sua família do governo federal talvez nos devolva a possibilidade de certa racionalidade na discussão política, de um debate mais lógico sobre os destinos do Brasil, sem perdermos tempo e energia rebatendo as teses excêntricas e absurdas de tanta gente lunática alojada na máquina estatal. Alguns dirão que não existe ainda uma correlação de forças que permita que esse afastamento aconteça. Mas a correlação de forças não é uma categoria estática. É preciso agir para que as mudanças aconteçam. A esse respeito, finalizo com trechos da tão conhecida canção de Geraldo Vandré Pra Não Dizer Que Não Falei Das Flores (de 1968, vejam vocês!!!):

Caminhando e cantando e seguindo a canção
Somos todos iguais braços dados ou não
Nas escolas, nas ruas, campos, construções
Caminhando e cantando e seguindo a canção.
Pelos campos há fome em grandes plantações
Pelas ruas marchando indecisos cordões
Ainda fazem da flor seu mais forte refrão
E acreditam nas flores vencendo o canhão.
Vem, vamos embora, que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora, não espera acontecer.

Vamos à luta!!!



Fonte: Prof. Dr. Jailton de Souza Lira - Graduado em História e Pedagogia, Doutor em Educação, professor do Centro de Educação (Cedu-Ufal) e presidente da Adufal

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